quinta-feira, 25 de março de 2010

AGORA TEMO 100 MILHÕES A MAIS E UM PÉSSIMO FUTEBOL, EM 70 TINHA JOÃO SALDANHA HOJE TEMOS DUNGA!!


14/03/2010 - 06h20
1970: 'apesar de você', uma campanha exuberante
Não eram "90 milhões em ação". O Brasil esquecia as mágoas e as dores de uma ditadura cruel com o futebol maravilhoso que Pelé e cia. praticavam nos gramados mexicanos
Pelé (com Jairzinho): maestro de um time exuberante que fez com que o Brasil esquecesse por alguns momentos da cruel ditadura do general Médici
Celso Lungaretti *
"No fundo desse país
ao longo das avenidas
nos campos de terra e grama
Brasil só é futebol
nesses noventa minutos
de emoção e alegria
esqueço a casa e o trabalho
a vida fica lá fora
dinheiro fica lá fora
a cama fica lá fora
família fica lá fora
a vida fica lá fora
e tudo fica lá fora"
(Milton Nascimento/
Fernando Brant)
Os que vêm acompanhando esta série hão de estranhar a ausência da música que mais marcou a conquista do Mundial de 1970, "Pra Frente Brasil".
Depois de "A Taça do Mundo É Nossa" (1958) e "Frevo do Bi" (1962), seria a escolha óbvia.
Mas, vivia-se o pior momento da ditadura brasileira, e nem mesmo o maravilhoso futebol que exibíamos em gramados do México nos tornava "noventa milhões em ação", "todos ligados na mesma emoção".
Atravessei a Copa como preso político no DOI-Codi/RJ, tomando conhecimento dos gols canarinhos pela gritaria no quartel e recompondo as forças durante a pausa para respirar que as partidas da Seleção nos garantiam  - pois os militares preferiam assistir às belas proezas nos estádios do que protagonizar a rude barbárie nos porões.
Nada impedia que, poucas horas depois, estivéssemos recebendo choques e pancadas, pendurados no pau-de-arara. A gritaria de júbilo cedia lugar aos gritos dantescos.
Não, naqueles dias podia até parecer que "todo o Brasil deu a mão", mas havia um abismo intransponível entre as mãos que golpeavam e as mãos que acudiam.
Daí ser bem mais apropriado o tema do filme Tostão, a Fera de Ouro, que também é de 1970 e fala exatamente de um país que esquecia suas agruras durante os noventa minutos de emoção e alegria proporcionados pelo futebol.
E, para os que estranharem esta intromissão da detestável política num espaço dedicado ao encantamento do futebol, vale lembrarmos quão determinante ela foi no momento dos acontecimentos.

João Sem Medo, as feras e o ogro
Depois do acachapante fiasco no Mundial da Inglaterra, quando a convocação de um número excessivo de jogadores e o tortuoso ritual dos cortes minaram a união do elenco, o Brasil decidiu definir desde o início um time-base.
Foi o que fez João Saldanha, jornalista e técnico com notórias afinidades com o Partido Comunista Brasileiro, um homem carismático e de personalidade fortíssima (o apelido de João Sem Medo era dos mais merecidos).
Formou o time para as eliminatórias com maioria de jogadores do Santos e Botafogo, as duas melhores equipes da época. E, para reerguer o combalido moral brasileiro, nada como o rótulo inspirado que o escritor e colunista Nelson Rodrigues cunhou: as feras do Saldanha.
A idéia é que nossos jogadores não deveriam temer nem respeitar ninguém, entrando em campo para atropelar os adversários.
E foi o que aconteceu nas eliminatórias: o Brasil passou como um trator sobre Colômbia, Paraguai e Venezuela, vencendo os seis jogos, com direito a goleadas. Foram 23 gols marcados e apenas dois sofridos.
Aí, uma conspiração esportivo-militar derrubou o técnico heróico.
Pesaram fatores como a independência que Saldanha assumia em relação aos repulsivos cartolas e sua relutância em colaborar com o marketing do ditador Emilio Garrastazu Médici, que era dado à demagogia futebolística (ia assistir aos clássicos no Maracanã com um radinho de pilha colado ao ouvido e batalhões de seguranças ao redor...).
Tentando suavizar sua imagem de ogro, Médici sugeriu a entrega de uma camisa de titular ao folclórico atacante Dadá Maravilha, ao que Saldanha respondeu:

"Quem escala a seleção sou eu, quando o presidente escalou o seu Ministério ele não pediu a minha opinião".

Ficou, claro, com a cabeça a prêmio. Os cartolas açularam então contra ele um técnico grosseiro e metido a valentão, que estava vivendo boa fase à frente do Flamengo: Dorival Knipel, o Yustrich.
Com a promessa de que sucederia Saldanha se o derrubasse, Yustrich desandou a atacá-lo de todas as formas, sem sucesso.
Até que levou a coisa para o lado pessoal, atingindo a honra do João, que provou ser mesmo sem medo: apanhou um revólver e foi atrás do caluniador em pleno estádio do Flamengo.
Yustrich, o falso ferrabrás, fugiu pulando a cerca, apesar de obeso. Cena ridícula.
E os cartolas, a pretexto de descontrole emocional, demitiram Saldanha e o substituíram pelo dócil Zagalo.

O quadrado mágico: bendito acaso!
Tão dócil que os líderes do elenco lhe impuseram a escalação de Rivelino, o reizinho do Corinthians. Ele preferia Edu, do Santos, num armação convencional de 4-2-4.
Assim, porque ninguém estava realmente aprovando na ponta-esquerda, surgiu, meio por acaso, a grande inovação tática da Copa de 1970: o quadrado mágico, formado por Gerson, Pelé, Tostão e Rivelino, que não guardavam posições fixas, deslocando-se de acordo com o desenrolar de cada ataque. (Na Copa seguinte, o  carrossel holandês  ampliaria esta rotação, estendendo-a para os demais compartimentos do time.)
Para completar, ficava mais à frente Jairzinho, goleador hábil e oportunista, aproveitando muito bem as assistências dos craques.
Na estreia, contra a Checoslovaquia, os brasileiros viram pela primeira vez uma partida de Copa do Mundo sendo transmitida ao vivo pela TV. A grande maioria ainda em preto-e-branco, pois poucos tinham poder aquisitivo para adquirir os recém-lançados televisores coloridos.
Petras abriu o placar e surpreendeu o mundo ao fazer o sinal da cruz (ué, comunistas também são cristãos?!).
Uma bomba de Rivelino, cobrando falta da meia-lua, restabeleceu a ordem natural das coisas. E o primeiro tempo ainda teve a tentativa de Pelé de encobrir o goleiro com um chute do meio de campo - um dos grandes gols que não aconteceram da história do futebol.
No segundo, só deu Brasil. Belos tentos de Pelé e Jairzinho (2) garantiram a goleada por 4x1, destacando-se os longos e perfeitos lançamentos que alcançavam atacantes com pouca marcação.
A partida seguinte foi a batalha dos mais recentes campeões: Brasil (1958 e 1962) contra Inglaterra (1966).
Jogo equilibrado, disputadíssimo, no qual o grande Banks fez defesa antológica, numa cabeçada fulminante de Pelé; em que até nosso mediano goleiro Felix, quem diria, andou salvando a pátria; no qual Astle perdeu chance incrível após falha de Everaldo.
O único gol foi uma pintura: Tostão recebe pela ponta-esquerda, enrola-se com três adversários e, já caindo, consegue centrar para Pelé, que talvez marcasse mas, com muitos adversários à frente, preferiu colocar Jairzinho cara a cara com Banks.
Vaga garantida, a partida com a Romênia virou amistoso de luxo. 3x2, com falhas de nossa defesa e gols de Pelé (2) e Jairzinho.
Nas quartas-de-final, a tradição prevaleceu. O Peru, treinado pelo nosso Didi, até que surpreendeu no ataque, comprovando a fragilidade da zaga brasileira (o craque Carlos Alberto; o bom Piazza, sacrificado por estar fora de sua posição; e os limitados Brito e Everaldo).
Em compensação, os próprios zagueiros peruanos levaram o esperado baile. 4x2, com gols de Tostão (2), Rivelino e Jairzinho.

Duelos de gigantes na reta de chegada
O outro rival sul-americano foi bem mais difícil. O Uruguai, campeão de 1930 e 1950, vendeu caro a derrota na semifinal.
A partida ficou ainda mais complicada a partir de uma falha grotesca de Felix, que aparentemente fez golpe de vista numa bola que poderia ter agarrado com certa facilidade. 0x1.
Quando o primeiro tempo já terminava, Clodoaldo surgiu como elemento-surpresa para fazer um gol providencial. 1x1.
No segundo, o sofrimento durou 30 minutos, até Tostão servir Jairzinho num contra-ataque. Superando dois adversários na corrida, o furacão desempatou.
Os uruguaios foram para cima e Felix se redimiu da bobeira do 1º tempo, fazendo defesas cruciais.
Pelé novamente deixa o mundo extasiado com um gol que não aconteceu: aplica desconcertante drible de corpo no goleiraço Mazurkiewicz e chuta raspando a trave.
No finzinho, a patada atômica de Rivelino funciona de novo, para dar números mais categóricos à vitória suada: 3x1.

Veio então o tira-teima entre duas seleções bicampeãs: Brasil e Itália (1934 e 1938). Quem vencesse, levaria a Taça Jules Rimet definitivamente para casa.
A superioridade brasileira foi marcante, contra uma Itália que, tecnicamente bem inferior, ainda se desgastara demais para despachar a Alemanha Ocidental na outra semifinal, decidida só na prorrogação (4x3).
Centro perfeito de Rivelino para a cabeçada de Pelé. 1x0.
A Itália empata após saída atabalhoada de Felix, que foi disputar a bola na intermediária. 1x1.
Gerson, o canhotinha de ouro, recebe a bola num corta-luz e desfere chute perfeito da meia-esquerda, aos 21 minutos do 2º tempo. 2x1.
A cansada Itália se entrega de vez quando, logo em seguida, Gerson lança a bola do meio-de-campo e Pelé, na área, apara de cabeça para Jairzinho marcar. 3x1.
O resto foi festa, olé e um gol apropriadamente qualificado de orgástico pelo Pasquim: Pelé encosta para Carlos Alberto, que vinha na corrida e fez exatamente o que já se desenhara na mente de todos os brasileiros, desferindo um potente chute cruzado que estufou as redes italianas.

                                            * * *
O único Mundial conquistado pelo Brasil sob regime ditatorial seria o mais instrumentalizado politicamente de todos os cinco. Ajudou a vender a ilusão de um deslanche econômico, logo desfeita pelos choques do petróleo; e a consolidar uma ditadura sanguinária, que escreveria página vergonhosa de nossa História.
Felizmente, da ditadura militar nada mais resta além dos registros da infâmia, em arquivos cujos guardiães tentam de todas as maneiras impedir que venham à luz.
Já as jogadas exuberantes de nossos craques serão lembradas para sempre... com orgulho!